ANO 2022 N.º 2

ISSN 2182-9845

Editorial

Alexandra Aragão

Ecoinovação jurídica para a sustentabilidade no Antropocénico
 

Celebraram-se, em junho de 2022, os 50 anos da Declaração de Estocolmo de 1972, sobre o ambiente e o desenvolvimento humano. Abrangentes e de caráter percursor, os princípios de Estocolmo irradiaram até aos nossos dias. Desde então e sob a influência de tão visionária Declaração, foram adotados instrumentos jurídicos de Direito ambiental, internacional e interno, cobrindo temas tão diversificados como ar, água solo, natureza e biodiversidade, alterações climáticas, proteção do ozono, uso do solo, resíduos, produtos químicos, biotecnologia, indústria, proteção civil e prevenção de acidentes, governança.
No entanto, a acumulação de instrumentos jurídicos não tem sido suficiente para infletir as tendências de evolução ambiental fortemente negativas, que caraterizam o período Antropocénico como uma época de profunda degradação da qualidade ambiental e climática. Tais tendências vêm sendo claramente identificadas, estudadas, descritas e publicitadas em relatórios aprovados por organizações internacionais especializadas das Nações Unidas, como o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas ou a Plataforma Intergovernamental para a Biodiversidade e Serviços dos Ecossistemas. O diagnóstico ambiental pouco animador, contido nesses relatórios, mostra a insuficiência das normas jurídicas existentes.
Algumas evoluções jurídicas mais recentes, todavia, dão-nos razões para ter esperança. O momento presente é propício para fazer um balanço do panorama jus-ambiental atual, cujos contornos se começaram a desenhar pouco antes do período agora denominado como pandemocénico
No arranque da segunda década do século XXI, foi adotado, na União Europeia, o Pacto Ecológico Europeu, que veio dar a centralidade devida às dimensões ambientais e climáticas de todas as políticas europeias, levando finalmente a sério o princípio da integração ambiental [v. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (artigo 11) e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 37)].
As questões ambientais passam então a marcar o ritmo das atividades, dos projetos, da planificação, e dos investimentos. Daí a importância de um novo princípio, nascido no Regulamento europeu relativo à promoção do investimento sustentável, e explicitado, em todos os seus contornos, numa comunicação da Comissão Europeia que dá orientações técnicas muito concretas sobre a sua aplicação. O princípio de “não prejudicar significativamente”, ao abrigo do Regulamento que cria um Mecanismo de Recuperação e Resiliência, visa justamente prevenir e sanar os conflitos entre economia e ambiente, e especialmente conflitos entre os dois grandes objetivos ambientais dos nossos dias - o clima e a biodiversidade. Os méritos e os efeitos práticos da aplicação do princípio de “não prejudicar significativamente” ainda estão por descortinar, mas a ambição é grande: auxiliar nas difíceis ponderações que condicionam a autorização da realização de aplicações financeiras em projetos de investimento suscetíveis de gerar impactes ambientais significativos.
Além da adoção do Pacto Ecológico Europeu, outro facto relevante, que obriga a desencadear modificações jurídicas significativas, foi a proclamação, ainda em 2019, do estado de emergência climática e ambiental na União Europeia. Reconhecendo a responsabilidade das Instituições Europeias por adotar medidas mais efetivas, em conjunto com os Estados Membros, de combate às alterações climáticas e de reversão da degradação dos ecossistemas, o Parlamento Europeu juntou-se a um conjunto de entidades que proferiram já declarações oficiais sobre o estado de exceção ambiental e climática nos seus respetivos países ou regiões.
É também num cenário de emergência, que o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas proclamou, em 2021, o direito humano a um ambiente são. Reconhecido constitucionalmente em muitos estados, o reconhecimento internacional do direito humano ao ambiente cingia-se a alguns espaços regionais como a América Latina e África e o caso peculiar da Europa, que conseguiu ter um sistema de proteção, e uma jurisprudência consolidada, apesar de a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ser omissa quanto ao direito humano ao ambiente [Aragão, 20201 e 20202]. Desde outubro de 2021, são as Nações Unidas que erguem a bandeira ambiental para defesa dos mais vulneráveis.
Em suma: é tempo de transição ecológica; a transição ecológica é urgente; a urgência obriga a ecoinovar.
Com efeito, não será possível assegurar uma transição ecológica rápida e efetiva se o Direito continuar a confiar apenas em instrumentos jurídicos clássicos, aplicados por mecanismos tradicionais e supervisionados por instituições ancestrais.
É por isso que o próprio Direito deve inovar, com a ecoinovação jurídica a acompanhar a ecoinovação científica e tecnológica. Surge assim um novo Direito do Antropocénico, que não se limita a controlar precaucionalmente os avanços científicos e tecnológicos, mas, pelo contrário de destina a possibilitar e alavancar, precaucionalmente, aqueles progressos da ciência e da tecnologia que tenham sido concebidos para a prossecução de objetivos ecológicos assumidos politicamente e tornados vinculativos juridicamente. Além dos objetivos climáticos assumidos desde o Acordo de Paris, entrámos, desde 2021, na década da restauração. 
Vejamos então alguns exemplos de possíveis linhas de ecoinovação jurídica:
— Ecoinovação através da adaptação de figuras jurídicas consagradas noutros ordenamentos jurídicos, como a atribuição de personalidade jurídica a elementos da natureza como rios, lagos, montanhas ou bosques. O súbito interesse pela atribuição de direitos à natureza perpassa diferentes culturas e não deve ser entendido como um transplante anacrónico e artificial de instrumentos associados a cosmovisões indígenas, mas antes como a ampliação de uma técnica jurídica, já utilizada anteriormente, de atribuição de personalidade jurídica a pessoas coletivas para uma proteção mais efetiva dos interesses de uma coletividade. 
— Ecoinovação pela identificação de novos atores judiciais, representativos de grupos bem identificados da sociedade, que argumentam com a sua situação, de especial vulnerabilidade pessoal, para exigir políticas climáticas mais fortes. É o caso de dois processos apresentados ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e por ele aceites: o caso das crianças portuguesas e o caso das senhoras idosas suíças. Ambos alegam estar numa posição de especial fragilidade perante as alterações climáticas e suas consequências (incêndios, ondas de calor), considerando ilegal a desproteção a que estão expostos.
— Ecoinovação pela utilização de novos sistemas processuais civis, concebidos para serem particularmente céleres, porque foram concebidos para lidar com conflitos ambientais massificados, nos quais centenas de milhares de vítimas de tragédias ambientais exigem compensações urgentes, apesar das dificuldades de acesso à justiça e de obtenção de provas judiciais. O caso das indemnizações devidas às vítimas da tragédia ambiental de Mariana, em 2015 no Brasil, na sequência da rutura de uma barragem de lamas de mineração, ilustra bem a preocupação de encontrar um mecanismo jurídico destinado a agilizar a atribuição de indemnizações. 
— Ecoinovação pela ampliação, à área ambiental, do âmbito de aplicação de conceitos já existentes nos ordenamentos jurídicos, mas aplicados a outros contextos ou outros ramos do direito. É o caso do reconhecimento do clima estável como Património Comum da Humanidade. O conceito de património comum não é novo, mas aplica-se agora pela primeira vez a um objeto jurídico misto, simultaneamente material e imaterial, que é o clima. A aplicação ao clima, deste restrito conceito, ocorreu em Portugal, na nova Lei de Bases do Clima de final de 2021. Esta ousada evolução jurídica portuguesa abre a porta a progressos jurídicos mais amplos: 
— Primeiro, comprometendo-se o governo português a promover idêntico reconhecimento pela Organização das Nações Unidas, é espectável que, a curto prazo, venha a ocorrer a consagração mundial do novo estatuto jurídico climático, o que facilitará o seu reconhecimento pelos estados, seguindo o exemplo português.
— Segundo, futuramente poderão vir a ser reconhecidos outros elementos naturais, componentes do sistema terrestre, também como património da humanidade, em linha com a própria Declaração de Estocolmo, que também neste ponto foi precursora. A biodiversidade e o ciclo hidrológico são dois candidatos naturais ao reconhecimento como património comum da humanidade.
Concluindo, podemos afirmar que as ecoinovações jurídicas permitirão avançar melhor e mais rapidamente no sentido da transição ecológica, se os processos de teste, aplicação experimental e generalização das novas soluções, forem acompanhados por estudos científicos, que mostrem que se trata de um verdadeiro “ecoprogresso” mensurável. Aqui, a medição da efetividade do Direito através de indicadores jurídicos virá conferir maior segurança a toda a inovação jurídica para a sustentabilidade.


[Alexandra Aragão é Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra]