ANO 2018 N.º 2

ISSN 2182-9845

EDITORIAL

Fátima Reis Silva

1. A proposta de Diretiva

Em Novembro de 2016 a Comissão publicou a proposta de diretiva 2016/0359 relativa aos quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, à concessão de uma segunda oportunidade e às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e quitação [Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52016PC0723]. Pretende eliminar obstáculos à livre circulação de capitais e à liberdade de estabelecimento, apontando como dificuldades as diferenças entre as legislações e processos nacionais em matéria de reestruturação preventiva, insolvência e concessão de uma segunda oportunidade, visando assegurar o acesso das empresas viáveis com dificuldades financeiras a quadros jurídicos nacionais eficazes em matéria de reestruturação preventiva que lhes permitam continuar a exercer a sua atividade, a concessão de uma segunda oportunidade aos empresários honestos sobre endividados após o perdão total da dívida e depois de um período de tempo razoável, e, finalmente, uma maior eficácia dos processos de reestruturação, insolvência e quitação, nomeadamente a redução da sua duração (considerando 1). É visto como percurso para a união bancária e financeira (elemento considerado crucial para a União dos Mercados de Capitais e da Estratégia para o Mercado Único: v. Comunicado de imprensa da Comissão Europeia de 22 de novembro de 2016, disponível in europa.eu/rapid/press-release_IP-16-3802_pt.pdf) e peça essencial na redução do elevado stock de NPLs.

Aponta-se a morosidade dos processos de reestruturação e de liquidação, as baixas taxas de recuperação de créditos e aumento do risco que tal cria, gerando diferentes condições de acesso ao crédito, dificuldades nas questões transfronteiriças mas não só, assumindo o objetivo de harmonização das legislações nacionais nestas matérias.

As PME’s são uma das preocupações do legislador comunitário que as identifica como menos capazes de suportar elevados custos de reestruturação, assinalando a necessidade de mecanismos de alerta e de modelos de planos adaptáveis.

Também pela via da dificuldade real de distinção, quanto às pessoas singulares, entre as dívidas pessoais e as dívidas de empresarialidade se dá atenção ao universo destes devedores, que muito releva no contexto das pequenas e médias empresas, compostas largamente de sociedades de capitais com vertente personalística vincada (sociedades por quotas), por sociedades unipessoais e ainda por muitos e muitos empresários em nome individual.

Pretendem-se quadros de reestruturação rápidos e precoces, que evitem a insolvência e são feitas uma série de minuciosas opções entre o catálogo de direitos e soluções disponível nos países da união europeia, algumas já nossas conhecidas e outras distantes do nosso ordenamento.

No desenvolvimento destas três ideias-chave: quadros de reestruturação precoce, concessão aos empresários de uma segunda oportunidade e melhoria da eficiência dos processos de insolvência, a diretiva divide-se em seis títulos: disposições gerais, quadros jurídicos em matéria de reestruturação preventiva, concessão de uma segunda oportunidade aos empresários, medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e concessão de uma segunda oportunidade, acompanhamento dos processos de reestruturação, insolvência e quitação e disposições finais.

Um dos pilares desta iniciativa – o estabelecimento de um quadro jurídico para a reestruturação, pré-insolvencial e de acesso simples e rápido – já está contemplado no nosso ordenamento jurídico desde 2012 – o PER e o SIREVE, até ao passado mês de Março são e eram, precisamente, mecanismos de reestruturação pré-insolvencial, o primeiro amplamente usado, o segundo com escassa mas eficaz utilização, escassa utilização essa que veio a determinar a opção pela sua revogação [cfr. art. 36.º n.º 1 da Lei n.º 8/2018, de 2 de março].

Aliás, percorrendo o elenco da proposta verificamos que o nosso direito positivo está já em certa medida em linha com algumas das previsões:

— temos já dois mecanismos enquadráveis no art. 4º (quadros jurídicos em matéria de reestruturação de empresas) - o PER e SIREVE, este segundo agora substituído pelo RERE (Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas); há dissonâncias que não descaraterizam as caraterísticas processos nacionais: por exemplo o art. 4º n.º 4 da Diretiva prevê a possibilidade de os procedimentos serem iniciados a pedido, não só dos devedores, como dos credores, com o acordo dos devedores. No ordenamento jurídico português a segunda possibilidade inexiste, exceção feita à não enquadrável possibilidade de apresentação de um plano de insolvência por um grupo de credores em processo de insolvência; na prática, porém, estamos todos cientes de que se credores suficientes ou de importância suficiente fizerem saber ao devedor a sua vontade ou disponibilidade de regular a sua situação mediante um mecanismo de reestruturação, o devedor, concordando, apresentar-se-á a um dos meios existentes.

— todos os regimes referidos cumprem a previsão do art. 5º (o devedor permanece na posse dos seus ativos);

— os arts. 6º e 7º da Proposta de Diretiva (suspensão das medidas de execução e seu efeitos) são assegurados pelo menos por um dos mecanismos com uma amplitude que poderá (deverá, se esta for a redação final) ser alterada ou temperada por esta previsão. Por exemplo, a lei já prevê que, no PER, o prazo de negociações (e com ele a suspensão das medidas de execução e seus efeitos) cesse a pedido de um grupo de credores que pode chumbar ou bloquear a aprovação do plano; no entanto a possibilidade de levantamento da suspensão em relação a um credor ou a uma categoria de credores não está contemplada e não é possível no ordenamento nacional vigente.

2. As grandes linhas da proposta

Pretendo percorrer a proposta focando os pontos que me parecem mais suscetíveis de gerar dúvidas e problemas na futura transposição desta proposta para o ordenamento jurídico português da diretiva, se vier a ser a presente a redação final.

É firme a intenção europeia de legislar nesta matéria e harmonizar nesta matéria, incluindo regras processuais e regras mistas, num exercício muito assertivo – embora deixando de lado expressamente as regras relativas às condições de abertura de processos de insolvência, a própria noção de insolvência, a graduação de créditos e as ações de impugnação pauliana [para uma visão global do percurso do direito europeu até ao ponto da apresentação da Proposta de Diretiva ver PAOLO MANGANELLI, “The Modernization of European Insolvency Law: An Ongoing Process”, J. Bus. & Tech. L., 11, 2016, p. 153; para uma visão muito crítica das opções tomadas ver HORST EIDENMÜLLER, “Contracting for a European Insolvency Regime”, European Business Organization Law Review, 18, 2017, pp. 273-304].

Esta é uma proposta e está a ser discutida, pelo que não sabemos ainda quais vão ser a opção e redação finais. Mas no projeto identificam-se com facilidade linhas de força que não vão ser simplesmente abandonadas ou re-orientadas.

O artigo 1.º assinala as três áreas abrangidas:

— reestruturação preventiva;

— nova oportunidade para empresários sobre endividados; e

— aumento de eficiência dos meios de reestruturação e de insolvência.

Logo no artigo 2.º no preceito que elenca as definições, destacam-se algumas opções importantes, como por exemplo os n.ºs 6 (formação de categorias); 8 (reestruturação forçada de dívida contra categorias de credores) ou 10 (regra da prioridade absoluta).

O artigo 3.º foca-se na matéria preventiva por excelência com a consagração da existência de instrumentos de alerta rápido, não detalhados, mas claramente focados noutra das preocupações já expressas nos considerandos – as pequenas e médias empresas – ficando proposto como mínimo que o referido instrumento terá que abranger, pelo menos, as PMEs.

Esta é uma matéria que está a ter muita atenção ao nível europeu, e Portugal não é exceção, sendo que a criação de um mecanismo de alerta precoce, ou early warning, é uma das medidas do Programa Capitalizar [ver Resolução do Conselho de Ministros n.º 42/2016 de 18/08/2016].

O Título II aborda a matéria dos quadros jurídicos preventivos, começando por propor – uma das linhas de força já aludidas – a obrigatoriedade da existência de quadros de reestruturação que evitem a insolvência.

As caraterísticas básicas propostas são, em síntese (arts. 4.º a 18.º):

— limitação da intervenção da autoridade (judicial ou administrativa) aos princípios da necessidade e proporcionalidade – art. 4.º n.º 3;

— pedido formulado pelos devedores ou com o seu acordo – art. 4.º n.º 4;

— manutenção da gestão corrente e do controlo dos ativos pelo devedorno decurso do procedimento – art.5.º n.º 1;

— nomeação de um profissional de reestruturação não obrigatória – art. 5.º n.ºs 2 e 3;

— suspensão de medidas de execução contra o devedor na medida necessária ao decurso das negociações – art. 6.º; sendo este o primeiro núcleo de matérias que merece a nossa atenção;

Prosseguindo no percurso pela proposta e pelas caraterísticas do quadro de reestruturação preventivo:

— suspensão do prosseguimento de pedidos de insolvência – art. 7.º;

— impossibilidade de resolução ou incumprimento de contratos executórios por dívidas anteriores, efeito que poderá ser limitado aos serviços essenciais – art. 7.º n.º 4;

— não automatismo de uma declaração de insolvência na sequência da não obtenção de um acordo – art. 7.º n.º 7;

— conteúdo mínimo do plano – art. 8.º;

— votos por classes ou categorias de credores e aprovação, por regra, em cada uma das categorias ou classes – art. 9.º n.º 4; sendo este o segundo ponto a focar no confronto com as soluções nacionais vigentes;

— possibilidade de voto pelos titulares de participações sociais – arts. 9.º n.º 1 e 12.º;

- homologação/confirmação do plano aprovado mediante um juízo de mérito sobre a sua regularidade procedimental, o teste do melhor interesse dos credores, princípio da igualdade e sobre a sua capacidade como instrumento de viabilização da empresa – art. 10.º, n.ºs 2, 3 e 4; sendo esse o terceiro ponto a destacar nesta nossa análise;

— possibilidade de imposição do plano a categorias de credores que não tenham aprovado o plano – art. 11.º n.º 1;

— possibilidade de impugnação de um plano prévia à confirmação ou em recurso desta decisão – art. 13.º;

— regra geral de não afetação dos credores que não participem na aprovação de um plano – art. 14.º n.º 2 – e esta regra conjugada com a regra da prioridade absoluta serão o quarto ponto de pormenor a detalhar;

— recorribilidade da decisão de confirmação – art. 15º, n.ºs 1 e 2;

— possibilidade de confirmação, em recurso, de plano, mediante o pagamento de uma compensação aos credores dissidentes – art. 5.º n.º 4, al. b) – uma novidade para nós, que surge como uma última tábua de salvação;

— proteção do financiamento ao devedor, isento de resolução em benefício da massa insolvente em insolvência posterior, salvo má-fé – art. 16.º n.º 1;

— possibilidade de concessão de privilégio creditório aos novos financiamentos ou financiamentos intercalares – art. 16.º n.º 2;

— proteção das transações necessárias à negociação, incluindo as de gestão corrente, sempre exceto má-fé – art. 17.º;

— obrigações de conduta para os administradores no quadro das negociações – art. 18º.

O Título III regula a concessão de uma segunda oportunidade aos empresários.

— acesso a perdão total das dívidas, proposta que, a ser aprovada tal como está, não exclui expressamente os créditos públicos ou de alimentos, excecionados na nossa lei atual (art. 245.º n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) – arts. 19.º e 22.º n.º 3;

— um prazo máximo de 3 anos até à obtenção do perdão, contado: i) em processos de liquidação, desde o pedido de abertura do processo; ii) em caso de plano de pagamento, desde o início da sua execução, prazo que pode ser mais longo – arts. 20.º n.º1 e 22.º n.os 1, 2 e 4;

— desnecessidade de decisão judicial ou administrativa para obtenção do perdão – arts. 20.º n.º 2 e 21.º; merecendo esta matéria alguma ponderação face às regras da própria proposta;

— a possibilidade de tratamento conjunto de dívidas pessoais e empresariais – art. 23.º;

— incentivo à aplicação destas regras a não empresários (considerando 15);

O Título IV trata das medidas para aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e segunda oportunidade, de forma mais genérica e com foco:

— nas garantias de formação dos profissionais que lidam com estas matérias, bem como dos magistrados – arts. 23.º e 24.º;

— nas garantias dos profissionais quanto à sua nomeação, supervisão e remuneração – arts. 26.º e 27.º;

— o uso de meios de comunicação eletrónica – art. 28.º;

O Título V trata do acompanhamento dos processos de insolvência, reestruturação e quitação, na importante vertente da coleção e tratamento de dados (arts. 29.º e 30.º).

Finalmente o Título VI trata das disposições finais das quais se realçam i) a monitorização periódica da aplicação da diretiva, no art. 33.º e ii) a obrigação de transposição pelos Estados Membros de 2 anos (art. 34.º).

3. As questões a ter em atenção face ao quadro jurídico português em matéria de reestruturação pré-insolvencial

3.1. O efeito suspensivo

O primeiro núcleo de matérias que merece a nossa atenção prende-se exatamente com este efeito suspensivo.

A Proposta prevê uma suspensão máxima de 4 meses, prorrogável até 12 meses, mas a prorrogação depende de três condições (art. 6º n.ºs 5 e 6): i) progressos significativos nas negociações; ii) inexistência de prejuízo injusto dos direitos ou interesses dos afetados com a continuidade da suspensão; iii) prognose de forte probabilidade de aprovação do plano.

Este regime, aparentemente próximo do efeito de stand still do processo especial de revitalização (PER), nos termos do art. 17.º-E do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tem a assinalável diferença de, enquanto neste a suspensão tem a duração das negociações, sendo prorrogável por mero acordo do devedor com o administrador judicial provisório, na proposta, surgindo com uma duração máxima superior, sujeita a prorrogação a um juízo de mérito inexistente no PER. Ou seja, as negociações e a suspensão surgem divorciadas, sujeita a continuidade desta a uma valoração.

Também os números 8 e 9 do mesmo artigo 6.º importam diferenças substantivas em relação ao regime jurídico nacional em vigor:

— possibilidade de revogação total ou parcial da suspensão de medidas de execução face a uma minoria de bloqueio (questão hoje discutida entre nós para o efeito de cessação do período de negociações nos termos do art. 17.º-G n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

— possibilidade de revogação parcial para um credor ou categoria de credores, independentemente do decurso das negociações.

3.2. O voto por classes de credores

O voto por classes ou categorias é o segundo núcleo de matérias sobre as quais teremos de ser especialmente cautelosos numa futura transposição:

A alínea d) do n.º 1 do art. 8.º da Proposta prevê como um dos elementos do plano (sujeito a confirmação por uma autoridade judicial ou administrativa):

«d) As categorias em que as partes afetadas foram agrupadas para efeitos de aprovação do plano, juntamente com uma justificação para tal agrupamento e informações sobre os valores respetivos dos credores e membros de cada categoria;»

E o art. 9º, que estabelece regras relativas à aprovação do plano estabelecendo desde logo que aos detentores de participações afetados, ou seja, aos sócios pode ser concedido direito de voto (nos termos do art. 12.º)

2. Os Estados-Membros devem assegurar que as partes afetadas sejam inseridas em categorias distintas em função dos critérios de formação de categorias. As categorias devem ser formadas de modo a que cada categoria englobe créditos ou interesses associados a direitos suficientemente semelhantes para justificar que os membros dessa categoria sejam considerados um grupo homogéneo com interesses comuns. No mínimo, para efeitos de aprovação de um plano de reestruturação, os créditos garantidos e não garantidos são inseridos em categorias distintas. Além disso, os Estados-Membros podem prever que os trabalhadores sejam inseridos numa categoria própria distinta.

3. A formação das categorias é apreciada pela autoridade judicial ou administrativa competente sempre que seja apresentado um pedido de confirmação do plano de reestruturação.

4. O plano de reestruturação considera-se aprovado pelas partes afetadas com a obtenção da maioria do montante dos respetivos créditos ou interesses em todas e cada uma das categorias. Os Estados-Membros estabelecem as maiorias exigidas para a aprovação de um plano de reestruturação, que nunca poderão ser superiores a 75 % do montante dos créditos ou interesses de cada categoria.

5. Os Estados-Membros podem estipular que a votação da aprovação de um plano de reestruturação assuma a forma de uma consulta e acordo da maioria necessária de partes afetadas de cada categoria.

6. Se a maioria necessária não for atingida numa ou mais categorias votantes discordantes, o plano poderá, não obstante, ser confirmado se cumprir os requisitos em matéria de reestruturação forçada da dívida contra categorias de credores, previstos no artigo 11.º.

E finalmente o artigo 11.º prevê que um plano aprovado seja vinculativo para categorias de credores discordantes preenchendo determinados requisitos, entre os quais avulta o respeito pela regra da prioridade absoluta.

Apesar das aparências, este é um mecanismo de aprovação completamente diferente do vigente entre nós, o qual entronca na experiência anterior.

Na verdade tudo vai passar pela formação das categorias e não pela contagem “simples” de votos ou maiorias, como é feita agora.

Só sabendo quais as categorias de credores a formar – o que dependerá do caso concreto, atento o critério da homogeneidade – se saberá se o plano tem sequer hipóteses de ser aprovado, dado que a exigência vai deixar de ser a aprovação por uma maioria de credores e passará a ser a aprovação dentro de cada uma das categoria de credores (um exemplo: um credor garantido em 1º grau; outro credor garantido sobre o mesmo bem em 2º ou 3º grau; se o valor do bem não for suficiente para ressarcir o primeiro, apesar de serem ambos garantidos, com o mesmo tipo de garantia e sobre o mesmo bem, em princípio não terão interesses homogéneos e não fará sentido que fiquem agrupados na mesma categoria; outro exemplo são os trabalhadores: havendo trabalhadores ao serviço e ex-trabalhadores, cujos contratos já cessaram mas cujos direitos não foram satisfeitos, a diferença de interesses entre eles conduzirá, provavelmente, à formação de duas categorias).

Diz-me a experiência que, por apresentar semelhanças com as nossas categorias de credores, qualquer que seja a concretização desta regra – que me parece ser daquelas linhas de força a que aludia antes – vamos aqui ter dificuldades acrescidas.

Além de ser um sistema que nos é totalmente estranho, a aparente semelhança com as categorias já existentes na nossa lei faz temer dificuldades. Uma coisa é certa, vamos ter que passar a olhar para os credores de outra forma, e indico como uma das principais atividades do juiz, no futuro, a decisão sobre a formação das categorias de credores – propostas pelos requerentes e confirmadas pelo juiz, diria eu com tempo suficiente para que se possam delinear estratégias face ao concreto plano a aprovar, ou seja, muito cedo no procedimento. Não deixaremos de ter que, de alguma forma valorar os créditos, teremos é, a acrescer a essa atividade, que os agrupar para a decisão sobre aprovação em função dos votos.

Diria mesmo que, à cabeça, ou pelo menos simultaneamente com o final da fase de apuramento dos créditos, o juiz terá sempre que se pronunciar sobre a formação das categorias de credores, a fim de proporcionar ao devedor e aos credores os dados que lhes permitem entrar na fase final das negociações – só delimitado e caraterizado o universo de credores se poderá perceber quem aprova ou não um determinado plano. Em termos processuais isto significa que a formação das categorias de credores deverá, idealmente, ser proposta pelo devedor, fundamentando, ser revista pelo administrador, fundamentando, terá que poder ser contraditada pelos interessados e, finalmente, ser confirmada pelo tribunal, tudo a tempo de os interessados terem esse universo em conta na fase final de negociações.

3.3. O juízo de mérito sobre o plano

O tema sobre o qual recai a maior preocupação, é uma preocupação muito centrada no papel do juiz, mas com implicações muito vastas:

O art. 10º, relativo à confirmação (na nossa linguagem homologação) de planos de reestruturação prescreve, no seu n.º 3: Os Estados-Membros devem assegurar que as autoridades judiciais ou administrativas possam rejeitar a confirmação de um plano de reestruturação caso este não apresente perspetivas justificadas de evitar a insolvência do devedor e garantir a viabilidade da empresa.

O que temos aqui, e, mais uma vez, creio firmemente que vai ficar, é o controlo material, pelo juiz, do mérito do plano enquanto instrumento de recuperação.

Na tradição jurídica portuguesa o juiz nunca fez este tipo de controlo. Nos antigos processos de recuperação de empresa o juiz avaliava a viabilidade e recuperabilidade da própria empresa e chegado a um diagnóstico de probabilidade positiva mandava avançar o processo. Só então e depois de definido o universo de votantes, se apresentava o plano que era votado e avaliado pelos credores. O juiz, na homologação, fazia o mesmo escrutínio que hoje se faz.

Recordo que o juiz no juízo de homologação faz um controlo formal e um controlo material das condições do plano e da igualdade entre credores, mas sem se imiscuir no juízo de mérito sobre as virtualidades do plano como instrumento de recuperação.

O art. 215.º do CIRE prescreve:

“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”.

O que agora se preparar para ser exigido é, além de um controlo técnico – que o plano seja apto a evitar a insolvência –, um controlo económico – que o plano garante a viabilidade da empresa.

Isto exige dos juízes uma preparação muito diferente da que hoje possuem. Mesmo recorrendo a peritos, o juiz tem que saber um mínimo destas matérias para controlar a fiabilidade das opiniões periciais, porque o juízo final é sempre dele.

Não posso deixar de recordar que, entre outras razões, por se considerar que os juízes não eram as personagens mais bens colocadas para avaliar as decisões de risco que a gestão empresarial envolve, se criou e desenvolveu, no século passado, em sede de apreciação da responsabilidade civil dos titulares dos órgãos sociais a business judgment rule.

E isto quanto a factos passados, não a fazer prognósticos para o futuro.

Não há tarefas impossíveis, mas esta é bem capaz de ser uma grande dificuldade no futuro. E não falo de dificuldade pessoal para os juízes, que estão habituados a decisões difíceis e desagradáveis (fizeram disso carreira, na verdade). Se a lei vier a consagrar que esta decisão vai ter que ser tomada com estes pressupostos, sê-lo-á, não tenho dúvidas.

Tenho é alguns receios quanto aos futuros e adaptados mecanismos de reestruturação que sigam este modelo e quanto ao seu êxito, ponderando agora o nosso tecido empresarial, maioritariamente composto de PME’s.

Este tipo de procedimentos têm no juiz o seu último pilar e apoio. Quanto mais bem preparado e proactivo este for, melhor será o resultado, negativo ou positivo.

Se daqui sair uma nova forma de encarar estes processos, de formação e de colocação de juízes e de fornecimento de meios aos tribunais, deixarei de estar preocupada. Se a reforma que aí vem for feita da forma habitual, mudando a lei e deixando os seus protagonistas adquirir ou não novos os novos conhecimentos exigidos por sua própria iniciativa, esta é, como vos disse a minha maior preocupação.

3.4. A regra da prioridade absoluta

A regra, entre nós, e exceção feita, pelas razões conhecidas, da ineficácia quanto aos credores públicos, é a de que um plano aprovado e homologado vincula todos os credores (regra geral), mesmo que não hajam reclamado créditos ou votado – cfr. art. 17.º-F n.º 10 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

O art. 14.º da Diretiva estabelece:

1. Cabe aos Estados-Membros assegurar que os planos de reestruturação confirmados por uma autoridade judicial ou administrativa sejam vinculativos para cada uma das partes neles identificadas.

2. Os credores que não participam na aprovação de um plano de reestruturação não são por ele afetados.

Atento o nosso regime jurídico não é facilmente discernível como respeitar a regra da prioridade absoluta – requisito para impor o plano a categorias de credores discordantes nos termos do art. 11.º - e não vincular todos os credores de determinado devedor.

A regra, no nosso direito falimentar, seja para o PER, seja para o plano de insolvência é a de que todos os credores ficam vinculados; temos agora um regime em que essa regra não se aplica, o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas, ou RERE, aprovado pela Lei n.º 8/2018 de 2 de março, mas não como regra geral para este tipo de processos.

Recordo que a Regra da Prioridade Absoluta (art. 2.º n.º 10) tem o conteúdo que se intui: a obrigatoriedade de uma categoria de credores discordante ser paga na íntegra antes de uma categoria inferior poder receber qualquer distribuição ou conservar qualquer participação no âmbito do plano de reestruturação; no fundo a nossa regra para a graduação de créditos, mas com uma diferença assinalável – o nosso processo de insolvência é uma execução universal. Podemos cometer todo o património do devedor à satisfação dos credores porque todos têm hipótese de lá estar. O PER é um procedimento universal, podemos fazer planos comprometendo todos os recursos disponíveis porque todos têm hipótese de lá estar.

Não posso deixar de interrogar para que serve não afetar os credores que não participaram se se vai cometer todo o património e rendimento dos próximos anos a pagar aos outros credores?

Como diremos a um credor que teria, se tivesse intervindo, categoria para ser pago em 1º lugar, e que não tendo participado, não é afetado pelo plano, se nada sobrar para lhe pagar?

A regra é perfeitamente compreensível, mas preza, à sua maneira, uma ficção, tal como a nossa regra de que todos são afetados, a qual prioriza a exequibilidade.

3.5. A concessão do perdão

A proposta, apesar de prever linearmente a desnecessidade de decisão, após o prazo de suspensão (no nosso ordenamento jurídico o período de cessão do rendimento disponível), também prevê, no artigo 22.º, que os Estados Membros podem limitar o acesso ao perdão ou fixar prazos mais longos, nomeadamente se o devedor tiver agido de má-fé para com os credores ao contrair as dívidas ou durante a cobrança das mesmas ou, ainda, se tiver recorrido ao processo de quitação de forma abusiva.

Estas possíveis limitações, a serem adotadas, são claramente incompatíveis com o acesso automático ao perdão (ou exoneração), pelo que se a redação final for a presente, a opção dos Estados Membros será entre o cumprimento do n.º 2 do art. 20.º, não introduzindo as limitações previstas no artigo 22.º, ou introduzir estas, não dando cabal cumprimento ao n.º 2 do artigo 20.º.

4. Em conclusão

Termos que aguardar a finalização das negociações do texto final da Diretiva para dar cabal resposta a algumas das interrogações levantadas. No entanto, uma vez que algumas das questões são desde já identificáveis como linhas de força, deveremos começar a ponderar qual o rumo que pretendemos dar ao nosso direito da insolvência e aos temas identificados, em especial quanto aos quadros de reestruturação pré-insolvencial.

Fátima Reis Silva é Juíza Desembargadora no Tribunal da Relação de Lisboa