ANO 2016 N.º 3

ISSN 2182-9845

EDITORIAL

Francisco Liberal Fernandes

O futuro do direito do trabalho e a garantia da justiça social

Tema transversal (e altamente especulativo) da doutrina juslaboralista actual, a discussão sobre futuro do direito do trabalho move-se entre uma realidade e uma incerteza.

A realidade tem ganho corpo através da rapidez com que se criam novas condições de produção e de trabalho, as quais originam, numa formulação geral, uma modelação da relação laboral fora dos esquemas formais correntes e uma mobilidade espácio-temporal que ultrapassam a prática até agora adoptada.

Perante esta “nova economia”, os padrões tradicionais do direito do trabalho — assentes, de uma maneira geral, numa lógica de protecção do trabalhador, designadamente através da limitação da autonomia contratual das partes (seja por força da intervenção legal seja pelo desenvolvimento da contratação colectiva), da existência de um elevado grau de estabilidade das formas e dos conteúdos da relação laboral, em que o contrato de duração indeterminada e a tempo completo assumia o predomínio — revelam-se progressivamente inoperantes, tanto a nível das relações individuais de trabalho, como das relações colectivas de trabalho.

Acresce que, se, por um lado, o progressivo desenvolvimento da sociedade de informação tem desencadeado uma substituição progressiva das relações hierárquicas laborais por formas autónomas de trabalho e, nessa medida, mais informais — se bem que esta nova autonomia tenda a esconder formas de auto-exploração —, por outro lado, e numa lógica de sentido oposto, as novas tecnologias vieram aumentar exponencialmente o controlo sobre a pessoa do trabalhador, de tal modo que a tradicional divisão entre a vida pessoal e a vida laboral assume contornos cada vez mais indefinidos, dando origem a um autêntico work-life blending, de efeitos desfavoráveis para quem trabalha, a respectiva família e a sociedade em geral.

Por sua vez, a incerteza que a nova realidade económico-laboral origina — para o que contribui inequivocamente a influência reforçada do mercado financeiro no mercado de trabalho e os efeitos dramáticos que, nos períodos de crise financeira, desencadeia na economia produtiva — está directamente relacionada com as dúvidas que, a nível global, se colocam quanto à possibilidade de alcançar níveis aceitáveis de justiça social, incluindo a erradicação da pobreza no emprego. Aliás, os próprios esquemas públicos de protecção social adoptados com base na relação de emprego tradicional tendem a reduzir os níveis alcançados; neste contexto, é particularmente difícil a situação dos países cujos sistemas de protecção social estão em fase mais ou menos embrionária.

Por outro lado, ao mesmo tempo que permitiu a centenas de milhões de pessoas saírem da pobreza, o funcionamento das novas formas económicas tem contribuído para o agravamento das situações de desigualdade (pese embora a sua elevada capacidade produtiva à escala mundial), para a redução das condições de trabalho (se a informalidade laboral é uma realidade crónica dos países em desenvolvimento, nos países mais desenvolvidos também não tem deixado de aumentar) e do respeito pelos direitos fundamentais, cujas principais manifestações se revelam nos níveis de desemprego, de subemprego e de exclusão social à escala mundial. Aliás, o sentimento de injustiça que estas situações provocam está, por seu turno, na origem de crescentes tensões sociais nas nossas sociedades.

Além disso, continua a ser uma incógnita determinar, à escala global, o lugar que as novas tecnologias reservam às pessoas, isto é, se estão ao serviço do ser humano ou se este não passará de um mero instrumento daquelas. Trata-se, por isso, de uma situação que deverá necessariamente ser objecto de modelação, a qual não poderá dizer apenas respeito às formas de trabalho, mas igualmente aos novos métodos de distribuição do trabalho disponível e da respectiva remuneração — o que reclama uma outra divisão social do trabalho à escala mundial, incluindo a partilha das novas tecnologias baseadas no conhecimento e na competência.

Embora a economia digital permita criar novas formas de trabalhar (employee sharing/job sharing/voucher based work/interim management/portfolio work/collaborative employment/crowd employment), os seus efeitos a nível dos esquemas jurídico-laborais continuam relativamente indefinidos. Contudo, os problemas a enfrentar pelo direito do trabalho não se limitam a procurar novos esquemas regulatórios dirigidos a alcançar um novo equilíbrio de interesses entre as partes do contrato ou da relação laboral ou a criar novos procedimentos que assegurem a efectividade dos direitos envolvidos. Torna-se igualmente necessário redefinir a noção de trabalhador e de empregador, de reconsiderar a relação tempo trabalho e tempo descanso, de incrementar a alargar o âmbito do diálogo social e de criar novas formas de representação colectiva.

As respostas a estas questões — que, numa primeira fase, pressupõem a identificação das reais alterações originadas no campo laboral pelos novos padrões de actividade — terão de surgir não só a nível nacional mas também internacional, na medida em que os efeitos da internacionalização da produção sobre o trabalho reclamam o desenvolvimento de uma regulamentação localizada a nível supra-nacional. Ainda assim, há que reconhecer que os esquemas normativos que vierem a ser adoptados não deixarão de estar sujeitos a um processo evolutivo que responda ao contínuo desenvolvimento tecnológico.

Por outro lado, se são evidentes os riscos da digitalização/globalização a nível do emprego tradicional — traduzidos não só na eliminação massiva de postos de trabalho, mas igualmente na desvalorização profissional e no aumento da segregação e das desigualdades no trabalho —, também não é menos verdade que a sociedade digital encerra potencialidades quanto à criação de condições de trabalho que contribuem para valorizar o sentido e o significado do trabalho, em especial nas actividade em que as exigências de conhecimento e competências permitem um aumento da iniciativa e da responsabilidade individual, ou seja, um maior controle do trabalhador sobre a execução do seu trabalho.

Porém, como se salienta no Relatório do Diretor-geral da OIT, Relatório I, O futuro do trabalho. Iniciativa do Centenário, apresentado na Conferência Internacional do Trabalho, 104ª Sessão, 2015, “a evolução do mundo do trabalho, independentemente do que pensarmos sobre o assunto, é o resultado de uma multiplicidade de decisões tomadas aos níveis nacional e internacional, tanto na esfera pública como privada e em todos os domínios. Do mesmo modo, e apesar da dinâmica da mudança já observada e de algumas realidades duras, o futuro do trabalho será o que fizermos dele. O desafio consiste em fazer o que realmente desejamos”.

Francisco Liberal Fernandes é Professor Auxiliar da FDUP e investigador do CIJ