ANO 2021

ISBN 978-989-746-287-0

Vulnerabilidade e direitos: género e diversidade

Anabela Costa Leão, Jorge Gracia Ibáñez e Luísa Neto (Investigadores Responsáveis)

Palavras-chave

vulnerabilidade; género; diversidade; direitos

Resumo

Nota Introdutória

No âmbito e continuidade de projeto em curso no âmbito da linha de investigação Novos Direitos do CIJ (Linha Direito, Pessoas e Poder do Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça), e do Eixo “Identidade e género” do Projeto CIJ-FDUP - Vulnerabilidade e diversidade: direitos fundamentais em contexto, realizou-se no passado dia 30 de outubro de 2020 o seminário subordinado ao tema Vulnerabilidade e direitos: Género e diversidade.
O Seminário correspondeu ao terceiro de uma série respeitante ao projeto referido, financiado pela FCT (Projeto FCT UID 443_CIJ). Em extrema síntese, o projeto visa refletir sobre os direitos fundamentais em contexto de diversidade. Partindo de uma compreensão pluralista do Direito constitucional que há-de contribuir para cimentar uma sociedade inclusiva, a proteção hodierna dos direitos fundamentais enfrenta desafios decorrentes das tensões entre unidade e diversidade e das exigências de proteção acrescida em caso de vulnerabilidades múltiplas e não raro cruzadas. Aliás, estas tensões (ao nível da previsão e da aplicação, v.g. judicial) revelam-se não apenas no seio do Estado social e culturalmente diversificado, mas também para além das suas fronteiras, atenta a rede complexa de internormatividade e a realidade da produção multinível do Direito. Trata-se aqui de discutir e analisar os problemas específicos de grupos vulneráveis que reclamam a consideração específica do princípio da igualdade e a consideração de um — eventualmente genérico — dever de cuidado cometido ao Estado, apontando-se aqui três pressupostos base da reflexão a empreender: a) A consideração da proteção da vulnerabilidade e do dever de “cuidado” como tarefas do Estado; b) A discussão das relações entre vulnerabilidade e estereotipo, no que tange à previsão e à aplicação de normas estaduais; c) A relevância da discriminação, designadamente múltipla/interseccional.
O Projeto desenvolve-se em 3 eixos específicos naturalmente suscetíveis de cruzamentos e ligações entre si: eixo 1 — Autonomia e capacitação: deficiência e idosos, no âmbito do qual se realizou, em abril de 2018 um Seminário, estando já publicadas as Atas correspondentes; eixo 2 — Minorias, migrantes e refugiados, com realização de paralelo seminário em abril de 2019 e publicação das correspondentes Atas; e hoc casu, eixo 3 — Identidade e género.
Em ano aziago de pandemia, o Seminário de 30 de outubro de 2020 correspondeu a necessário adiamento da previsão de data inicial de Abril anterior, torneou limitações decorrentes de decretação de estados de emergência e de limitação de circulação entre concelhos, lamentáveis infeções de oradores e complicações de vidas familiares resultantes deste contexto, limitações de restrições entre concelhos e levou a organização a a optar por um complexo sistema misto que de algum modo nos pôde dar ainda o conforto mínimo da humanidade da presença.
Centrou-se o programa em duas questões gradas: a discussão do contexto social e individual e a discussão do reconhecimento jurídico. Se a igualdade ou, nos termos sugeridos, a equidade de tratamento entre todos – sem diferença de sexo ou género - é um princípio fundamental dos atuais ordenamentos jurídicos, sendo por conseguinte uma componente de pleno direito da cidadania e mesmo um real critério da democracia - como proclamou o Conselho da Europa – foi propósito do Seminário abstrair do contexto tradicional de análise das assimetrias nos indicadores sociais entre a situação das mulheres e dos homens tanto na esfera pública como na esfera privada.
De facto, antes se pretendeu discutir mais fundamente o Direito como inevitavelmente endossado a uma filosofia dos valores e a escolha pelo legislador de um modelo normativo àquela adequado. Neste contexto de opção entre modelos de objetivismo/subjetivismo, a autonomia privada surge como voie moienne problematizando as relações entre a vontade e a norma.
Podemos afirmar que uma norma moral ou ética é autónoma quando encontra em si mesma o seu próprio fundamento. Ora, afastada a possibilidade de conceber a tutela constitucional da autonomia como uma garantia direta, autónoma e global, tem-se procurado averiguar se ela emerge indiretamente da previsão de outros direitos, v.g. em um direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Sabendo existir uma miríade de possibilidades de definição da liberdade (positiva e/ou negativa) pressuposta na autonomia (desde logo como ausência de restrição a escolhas possíveis ou dispositional freedom que Feinberg propõe), a ideia de Direito implica um referencial ético legítimo e a determinação do mínimo de liberdade negativa pessoal - que em circunstância alguma pode ser violado - impõe a invocação de um conceito de agent relativity não muito distinto da doutrina do deontologismo moral. Ora, se Kant explicou que «o que devo fazer depende do que sou capaz de fazer», o que se pretende averiguar é da justeza absoluta dessa afirmação, trazendo à colação diferentes entendimentos da relação entre o dever e a possibilidade.
As vias a seguir não poderão ser as de um mero ensaio livre do possível, antes se há-de encontrar uma mezza via que eleja porventura o critério ético como indirizzo essencial. É a ‘consciência jurídica geral’ que traça o limite da validade da autonomia constitutiva: a libertação do indivíduo é enquadrada por parâmetros de ética social, que determinam uma escolha razoável entre ações verdadeira e possivelmente desejadas, numa tentativa de conciliação entre uma missão ‘iluminadora’ dos indivíduos, que supostamente se atribui ao Estado, e a necessidade de procurar a solidariedade própria do corpo social.
Mas o pluralismo social de valores está – tem que estar - intimamente associado à autonomia. Esta asserção conduz a um encorajamento ativo da liberdade das pessoas para guiarem as suas próprias vidas por escolhas sucessivas a partir de uma gama adequada de opções válidas, bem como a uma tolerância passiva de escolhas erradas, pelo menos até ao ponto em que nenhumas medidas sejam tomadas pelo Estado para as corrigir, tendo em conta a necessidade de proteger os interesses dos outros. Assim, não só a autonomia deve ser orientada para o bem, como a própria liberdade é um bem, que entra em tensão com a democracia para a criação da esfera de autonomia privada e da delimitação público/privado.
A legitimidade de intervenção do Estado é então necessariamente medida como um espaço de consciência - um non possumus (um kannunschifter): o Estado só deve intervir nesta matéria para assegurar o essencial dos pressupostos em que assenta a autonomia privada e a igualdade dos sujeitos, bem como para garantir outros valores fundamentais da coletividade que esta não possa deixar entregues à livre atuação da consciência dos cidadãos.
Este princípio de liberdade, que apenas pode abranger seres humanos na maturidade da suas faculdades, implica assim uma distinção entre as condutas que dizem respeito unicamente ao próprio indivíduo (self regarding actions, na terminologia de Mill), e as condutas que implicam outros membros da sociedade e em relação às quais, para prevenir a ocorrência de um dano, a intervenção social se justifica (desde que se não exceda o dano que a conduta do indivíduo causaria a outrem). Ou seja: desde que a conduta de uma pessoa afete de forma prejudicial os interesses de outras, a sociedade tem jurisdição sobre ela, mas o mesmo já não sucede quando a mesma conduta não afete os interesses de ninguém, para além dos seus próprios, ou não os afetaria se as outras pessoas não os quisessem (sendo de idade madura e entendimento normal todas as pessoas afetadas). No entanto, o consentimento autónomo legalmente admitido pode frustrar o sistema social auto-referente positivo e provocar perturbações socialmente intoleráveis da convivência social constitucionalmente sancionada, mormente em temas que lidam com o sistema de humanas representações.
O desafio contínuo é o de manter a crença de que o futuro das liberdades civis e dos direitos fundamentais é pelo menos tão importante no presente como foi no passado e que qualquer método de salvaguarda dos direitos tem que nos exigir uma revisão constante e um debate rigoroso. Há liberdades, chez le législateur, que não devem ser mais que tolerâncias e que não deveriam ser confundidas com o bem público. Mas a intolerabilidade mede-se pela afetação nuclear do princípio da dignidade humana, que há-de necessariamente acompanhar todo o desenvolvimento da pessoa. Será conceito indeterminado, mas imprescindível.
Permitiu o Seminário dar uma outra concretização ao anterior estabelecimento de rede de discussão entre académicos com afiliações a instituições várias, portuguesas e estrangeiras, reunindo investigadores da Faculdade de Direito da Universidade do Porto – e da sua Escola de Criminologia –, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e da Universidade Católica Portuguesa, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, da Escola de Direito da Universidade do Minho bem como membros do Supremo Tribunal de Justiça e do Instituto de Registos e Notariado.
A ciência – e a ciência jurídica, com contributo interdisciplinar inestimável –, como cabe a e em uma universidade, caracteriza-se pela liberdade de investigação mas também pela adoção de um método rigoroso de abordagem que não cede nem pode nem deve ceder nem por um lado a modismos de discussão nem a preconceitos ideológicos. Foi esse o propósito que, cremos, fez comungar todos os oradores, na sua diversidade de posições.

É a presente publicação um precipitado deste iter, coligindo-se os trabalhos doutrinais que visam permitir a disseminação deste conhecimento.

Anabela Costa Leão, FDUP e CIJ
Jorge Gracia Ibáñez, FDUP e Escola de Criminologia
Luísa Neto, FDUP e CIJ