YEAR 2021 N.º 1

ISSN 2182-9845

Editorial

Rute Teixeira Pedro

Covid-19 Pandemic and contractual crises
A pandemia Covid-19 e as crises contratuais

Em março de 2021, completa-se um ano sobre a data da deteção dos primeiros casos positivos do vírus SARS-COV2 em Portugal. No mesmo mês, perfaz-se também um ano sobre a data da declaração, pela Organização Mundial de Saúde, do estado de pandemia por força da disseminação do novo coronavírus detetado no fim do ano anterior na cidade chinesa de Wuhan.
O contexto pandémico importou, desde logo, e muito especialmente num primeiro momento, perturbações significativas do habitual desenrolar da vida quotidiana, com a quebra ou afetação importante de algumas cadeias regulares de circulação e transmissão de bens e de prestação de serviços. Acresce que a necessidade de adoção de medidas que visaram travar a progressão da transmissão comunitária da doença e evitar o colapso do sistema nacional de saúde importaram também limitações múltiplas ao exercício de diversas atividades. 
As circunstâncias em que eram baseados os comportamentos, nomeadamente as decisões relativas ao tráfego jurídico negocial, alteraram-se, de forma repentina, e em larga medida, sobretudo na fase inicial, em muitos casos, de modo imprevisível. Esta alteração teve um impacto significativo no programa obrigacional de muitas relações contratuais já constituídas, com perturbações de natureza vária nas prestações debitórias a realizar.
Certas prestações deixaram de poder ser realizadas e a impossibilidade revelou-se, de imediato, definitiva, nomeadamente quando se tratava de prestações temporalmente referenciadas, com a fixação de um prazo fixo absoluto. Outras puderam realizar-se, ainda que tardiamente ou parcialmente, e com a consequente verificação de danos na esfera jurídica do credor. Outras ainda realizaram-se, mas importando esforços acrescidos e custos aumentados por parte do devedor. Noutros casos, o devedor predispôs-se a realizar a prestação, mas o credor não praticou os atos necessários ao cumprimento contratual, por força, nomeadamente, do encerramento de estabelecimentos em que as prestações deveriam ser realizadas. Noutros ainda, o interesse que o credor nelas tinha desapareceu, com o atraso no cumprimento ou com a frustração dos fins projetados ditada pela alteração profunda na economia (onde pontificou o decréscimo abruto do turismo, entre outras atividades). Houve também bens que se depreciaram, e outros que se valorizaram.
Ao direito foi (é) reclamada a resposta para as crises contratuais que, inevitavelmente, se produziram e continuam ainda a produzir-se. Houve, desde logo, no plano legal, legislação publicada contendo soluções dirigidas à sua aplicação enquanto a pandemia perdura, apresentando, nessa medida, natureza excecional. Estas intervenções legislativas produziram-se pontualmente em certos setores de atividade, e traduziram-se, principalmente, na concessão de moratórias para o cumprimento de certas prestações (por exemplo, quanto ao pagamento de rendas ou quanto às prestações relativas a empréstimos bancários). 
Descontadas as soluções consagradas na legislação aprovada para o contexto pandémico, revela-se de magna importância considerar se as partes não curaram, antecipadamente, de cenários de ocorrência de perturbações do programa obrigacional que devam ser aplicadas no contexto presente. Há, então, que começar por buscar as respostas que se encontram no próprio contrato, averiguando se das cláusulas contratuais se extrai a solução aplicável ao caso vertente. Na verdade, no contrato, como expressão privilegiada de autonomia privada, podem as partes contratuais ter previsto regras que ofereçam resposta a alguns dos problemas levantados pela pandemia. Perfila-se a este propósito, como especialmente relevante, a consideração de eventuais cláusulas de força maior, cláusulas de hardship, cláusulas de sole remedy ou cláusulas variadas que importem uma específica distribuição do risco (da prestação e da sua utilização) entre as partes. É decisivo aferir se o âmbito de aplicação de tais cláusulas se estende a uma situação da natureza daquela que se verifica no concreto contexto pandémico que se enfrenta na atualidade. Para o efeito, ganharão, necessariamente, protagonismo as operações de interpretação e de integração do contrato, à luz das normas contidas nos artigos 236.º e seguintes e nos artigos 239.º e seguintes, respetivamente. 
O regime aplicável às perturbações do programa obrigacional pode, por isso, encontrar-se no próprio contrato, devidamente interpretado ou integrado. Antecipa-se, aliás, que, previsivelmente, a possibilidade de ocorrência de uma pandemia – que se prevê que, no futuro, possa ocorrer com mais frequência – possa integrar, mais abundantemente, os contornos da autorregulação que as partes vertam no clausulado de contratos que venham a ser celebrados no futuro.
Independentemente do contexto pandémico que hoje vivemos, a lei contém soluções que podem resolver alguns dos problemas colocados pela ocorrência de perturbações do programa obrigacional e que serão de aplicar na conjuntura hoje vivida. Encontram-se múltiplas respostas jurídicas, no direito privado comum vigente, nomeadamente no direito civil.
Sem prejuízo de normas contidas na parte dedicada à disciplina especial de vários contratos (pense-se, por exemplo, no art. 1227.º, relativo ao contrato de empreitada ou no art. 1040º relativo ao contrato de arrendamento), importa considerar com atenção o regime previsto para o incumprimento da obrigação. Tratando-se de uma situação pandémica, devemos considerar, desde logo, a disciplina do incumprimento não imputável ao devedor, seja a do atraso no cumprimento seja a da impossibilidade de cumprimento não culposos, prevista nos artigos 790.º do Código Civil. Não podemos, no entanto, esquecer que, se o não cumprimento se ficar a dever ao próprio devedor que não praticou os atos que lhe são devidos mesmo nas circunstâncias atuais, então, estaremos perante uma situação de mora ou incumprimento definitivo imputáveis ao devedor, para cuja resolução se convocarão as regras consagradas nos artigos 798.º e seguintes do mesmo Código. O regime da mora do credor (art. 813.º e seguintes) encerrará também a solução adequada para certas situações.
Por fim e sem pretender esgotar os mecanismos predispostos na lei para responder às crises contratuais, não pode contornar-se, no contexto pandémico que vivemos, a consideração das virtualidades que podem estar contidas no regime previsto para a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias no art. 437.º do Código Civil.
Não restam dúvidas de que a disseminação do vírus SARS-COV2 e as medidas de combate à COVID trouxeram abundantes e delicados desafios, muitos deles de natureza jurídica. É também certo que, no ordenamento, se encontram vários instrumentos que devem ser chamados à linha da frente para que o Direito dê a resposta que lhe cabe dar aos problemas carecidos de solução. 

[Rute Teixeira Pedro  é Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Membro do Conselho de Redacção da  RED]