YEAR 2017 N.º 2

ISSN 2182-9845

EDITORIAL

José António Sá Reis

“Make antitrust great again”? – perspetivas para o direito da concorrência norte americano na era da pós-verdade

1. É comum depararmo-nos, em textos norte americanos sobre direito da concorrência, com a afirmação segundo a qual “antitrust has been one of our most successful exports”. E de facto não podemos deixar de conceder que é ao direito dos EUA que se deve a parte de leão da elaboração teórica e da construção da grande maioria dos institutos que desde o início do século passado colonizaram e povoaram muitos dos modernos ordenamentos jurídicos, fornecendo-lhes mecanismos cada vez mais eficazes no combate a práticas que ameaçam, entre outros bens jurídicos, o acesso de todas as empresas ao mercado em condições de paridade e a liberdade de escolha dos consumidores.

A importância que os norte americanos atribuem ao combate aos monopólios, cartéis e demais práticas anti concorrenciais tem uma longa tradição, e funda-se na conceção de democracia económica que orienta todo o seu ordenamento jurídico desde a declaração de independência e os primeiros esboços de texto constitucional. Numa troca de correspondência entre Thomas Jefferson e James Madison (dois dos pais fundadores dos EUA que viriam a ser, respetivamente, o terceiro e quarto presidentes da república) datada de 1788, o primeiro referiu mesmo, como um dos aspetos que mais lhe desagradava na proposta de texto da constituição americana, a omissão de uma referência expressa ao combate aos monopólios. A resposta de Madison (conhecido justamente como o pai da constituição norte americana) ficou célebre: os monopólios “são considerados, com justiça, como um dos maiores incómodos à governação. Mas, na medida em que estimulam a produção de obras literárias e de descobertas engenhosas, não serão eles demasiado valiosos para serem totalmente renegados? Os monopólios são sacrifícios de muitos a uns poucos.  Quando o poder está nas mãos da minoria, é natural que eles sacrifiquem a maioria às suas próprias parcialidades e corrupções. Quando, como acontece entre nós, o poder está na maioria e não na minoria, não pode haver grande perigo em que aquela minoria seja favorecida desta forma. É muito mais de recear que sejam as minorias desnecessariamente sacrificadas à maioria.”

2. Nesta troca de argumentos com 230 anos temos já encapsuladas as duas grandes perspetivas perante o antitrust que desde então encontramos, em regime mais ou menos rotativo, entre políticos, juristas e economistas norte americanos: a linha de Jefferson, mais aguerrida no combate aos monopólios, partidária da generalização das infrações per se (comportamentos tidos sempre como ilícitos, independentemente dos efeitos que possam vir a produzir num caso particular) e convicta de que os custos económicos e sociais das práticas anti concorrenciais superam largamente as eventuais externalidades positivas que estes eventualmente possam produzir; e a linha de Madison, mais contemporizadora, que por princípio faz depender a punibilidade de um comportamento da demonstração dos seus concretos efeitos anti concorrenciais (partidária, portanto, do recurso geral à rule of reason), e que aceita que por vezes os carteis, oligopólios e monopólios possam mesmo ser a forma política e economicamente mais eficiente de prosseguir alguns fins públicos.

Esta divergência de perspetiva, diga-se, não significava de forma alguma que Jefferson e Madison fossem adversários políticos. Muito pelo contrário, ambos fundaram em 1791, conjuntamente, o Partido Democrático-Republicano (que em 1828 viria a dar lugar ao atual Partido Democrático), em oposição ao Partido Federalista de Alexander Hamilton, então Secretário do Tesouro. Ou seja, se é verdade que Jefferson e Madison de algum modo iniciaram esta discussão, eles são também a prova cabal de que ambas as perspetivas podem conviver com os princípios essenciais da democracia económica em que se baseava toda a construção pensada pelo texto constitucional que em 1789 viria a entrar em vigor.

3. Num debate recente promovido pelo Stigler Center, o economista Sam Peltzman alinhou estas duas grandes visões da luta anti-monopólio com duas tendências distintas da escola de Chicago, comparando-as com um falcão e uma pomba.

A linha dura (a “hawkish Chicago school”) foi liderada por Henry Simons, que nos anos difíceis que duraram desde o início da Grande Depressão até ao final da 2ª Guerra Mundial propôs um conjunto de mudanças na arquitetura económica e financeira dos EUA com o objetivo de conduzir o país a um “liberalismo positivo”. No seu ensaio de 1934, justamente intitulado A positive program for laissez-faire, Simons defendia um conjunto de medidas (de natureza fiscal, monetária e regulatória) que viessem devolver a economia aos mercados, aos produtores e aos consumidores. Entre propostas de regresso ao padrão-ouro e de um controlo muito apertado, quando não a eliminação, de algumas formas de circulação de riqueza que não incorporassem um valor efetivo (sobretudo os valores mobiliários e instrumentos financeiros de curto prazo, a que chamava “near moneys” e “practically moneys” para pôr em realce a sua natureza apenas vagamente aparentada com a criação de valor), Simons defendia a abolição de todas as formas de monopólio privado, incluindo “o desmembramento das grandes empresas oligopolísticas e a aplicação das leis antitrust aos sindicatos”, advogando igualmente que, nos casos em que as condições de mercado ou de produção requeiram ou fomentem empresas de dimensões excessivas, estas fossem exploradas pelo governo federal e não por empresários privados. Foi esta a linha de pensamento que viria a inspirar o Relatório Nealde 1968, que sugeriu uma série de reformas (quase todas amplamente ignoradas) tendentes a limitar os oligopólios e as concentrações de empresas.

A linha mais branda (a “dovish Chicago school”) surgiu já nos anos 50, quando as nuvens negras das três décadas anteriores começaram a dissipar-se e a economia norte-americana arrancou definitivamente para uma posição de liderança mundial incontestada e aparentemente sustentável. A ajuda financeira concedida pelo Plano Marshall, bem como as obrigações acessórias de utilização consignada dos fundos cedidos que este trazia consigo, garantiu que as grandes empresas americanas tivessem na Europa um mercado de exportação que lhes permitisse crescer quase exponencialmente, e assumirem-se como dominantes nos diferentes setores da indústria. O mentor inicial desta linha de pensamento foi Aaron Director, sendo aqui que se inspiraria o Relatório Stiglitz de 1969, encomendado pelo então presidente Nixon a um segundo grupo de académicos, juristas e economistas de Chicago como uma espécie de contravapor às conclusões do Relatório Neal. A sua expressão máxima viria, todavia, a ser condensada mais de duas décadas depois por Robert Bork, no seu livro de 1978 The antitrust paradox – a policy at war with itself, obra muitas vezes considerada como talvez a mais influente e mais citada de sempre, entre a literatura antitrust. De forma muito condensada, Bork defende que o combate de certas práticas normalmente tidas por anti concorrenciais (como os descontos de fidelização e outros tipos de acordos verticais) acaba por ter o efeito perverso de proteger os concorrentes mais ineficientes do normal funcionamento do mercado, permitindo-lhes cobrar preços mais altos (ou, no limite, continuar a laborar) em prejuízo dos consumidores e dos outros concorrentes reais ou potenciais. Nesta visão das coisas, a ética cede perante a eficiência: os comportamentos não devem ser negativamente valorados por si mesmos, mas apenas na medida em que afetem em concreto, e de forma economicamente mensurável, os consumidores.

4. Estas duas linhas, inauguradas por Jefferson e Madison e desenvolvidas mais de um século depois por Simon e Director (e Bork), são também respetivamente, no último meio século, as grandes linhas orientadoras dos programas e da ação dos partidos Democrático e Republicano, que se vêm alternando na presidência dos EUA e na liderança do Congresso. Os democratas, tendencialmente defensores de uma maior intervenção pública na economia, de uma regulação mais apertada dos mercados e das empresas, e de um mais rigoroso controlo administrativo e judicial do cumprimento daquelas normas, são os herdeiros naturais da herança ideológica de Jefferson. Os republicanos, que de uma maneira geral se inclinam para um laissez faire suficientemente maleável por forma a permitir ao mercado criar as suas próprias regras, não olham de forma tão severa e desconfiada para os oligopólios e para as concentrações, reservando a intervenção governativa e judicial para casos comprovadamente muito graves.

Nota-se desde há muito, no entanto, e como já tem sido sublinhado por académicos e comentadores, uma outra diferença de posicionamento na forma como os democratas e republicanos encaram os problemas de concorrência das empresas americanas, e se lhes dirigem em tempos de campanha e de formulação de programas governativos – tempos propensos ao populismo e ao anúncio de medidas que soem bem junto das franjas do eleitorado que possam ser decisivas na contagem dos votos. O discurso dos democratas é maioritariamente dirigido “para dentro”: garantir que os EUA disponham de leis de concorrência justas e eficientes, e que estas sejam aplicadas de forma eficaz, é a melhor forma de promover preços baixos, fomentar a inovação entre as empresas americanas e maximizar o bem-estar económico dos consumidores. Já os republicanos alternam com frequência este discurso com um outro, consideravelmente mais agressivo, e relacionado com a política comercial externa: a concorrência, normalmente classificada desde logo como “desleal”, que as empresas americanas sofrem por parte de empresas estrangeiras, e a necessidade de preservar dessa concorrência, seja por que meios for, o mercado dos EUA, as suas empresas e, em última instância, os postos de trabalho dos seus cidadãos. Foi assim com os automóveis japoneses, com o aço canadiano e com os aviões europeus, e tem sido assim com as importações (sobretudo as de bens que empregam muita mão de obra) provenientes da China ou do México.

Não espanta, portanto, que na campanha eleitoral que culminou com a eleição de 8 de novembro passado, as referências à política de concorrência tenham sido mais frequentes, e consideravelmente mais específicas, do lado de Hillary Clinton do que do lado de Donald Trump. No documento de campanha Vision for an Economy Where our Businesses, our Workers, and Our Consumers Grow and Prosper Together, Clinton anunciava “um novo compromisso para promover a concorrência, regular a concentração excessiva e o abuso de poder económico, e revigorar as leis antitrust e a sua aplicação”. Entre as grandes linhas de ação anunciadas, referiam-se entre outras medidas a nomeação de líderes fortes para a Divisão Antitrust do Departamento de Justiça e para a Federal Trade Commission, um fortalecimento agressivo dos poderes das instituições encarregadas de analisar os projetos de concentração, incluindo a monitorização subsequente desses processos através de post-merger reviews, e um cuidado acrescido com as práticas abusivas das grandes empresas relativamente às suas concorrentes de menor dimensão, nomeadamente protegendo estas últimas contra abusos de litigância.

5. E Donald Trump, o homem que inesperadamente venceu as eleições e se tornou o 45.º presidente, o empresário-político que vai estar à frente dos destinos dos EUA durante os próximos quatro anos – o que disse ele durante a campanha sobre a concorrência e os mecanismos antitrust, e o que podemos legitimamente esperar dele e da sua administração em termos de cooperação internacional, de medidas legislativas, de tendências judiciais ou de práticas administrativas? Quase nada.

Começando pela cooperação internacional, esta é uma matéria em relação à qual não se ouviu ainda qualquer manifestação – nem durante a campanha, nem após a nomeação. Convém recordar que no direito da concorrência a lei aplicável à conduta das empresas é a do mercado em que essa empresa atua, e não a da sua sede; e convém recordar que hoje em dia a generalidade dos ordenamentos dispõe de leis antitrust. Ora, sabendo-se como as matérias com incidência económica são propensas a escaladas retaliatórias, e tendo em conta os sinais de uma tendência marcada de Trump para o unilateralismo na formulação das suas políticas, não espanta que desde novembro passado os analistas venham mostrando uma preocupação crescente com uma quebra na cooperação internacional por parte dos EUA, seja relativamente à União Europeia, ao bloco OCDE ou no âmbito da International Competition Network. E a verdade é que os sinais que Donald Trump tem dado noutras áreas, em que pudemos já avaliar a sua predisposição para dialogar e colaborar com outras nações, não são nada encorajadores. O seu mandato foi praticamente inaugurado com a retirada dos EUA da TPP (a Parceria Transpacífico), numa ação política que, se é certo que deixou feliz os muitos que acreditavam ser aquele um mau acordo, deixou receosos muitos outros, não apenas de possíveis retaliações, mas sobretudo de que a China possa vir a ocupar nesse acordo o espaço que os EUA rejeitaram. As suas ideias e declarações relativamente ao México, começando pela construção do célebre muro e terminando na ameaça continuada de rasgar os compromissos assumidos no âmbito do NAFTA, são um verdadeiro tratado sobre como não tratar um país vizinho, sobretudo tratando-se de um vizinho daquela dimensão e com aquele mercado, com tantos potenciais problemas de segurança e de imigração ilegal, e de uma maneira geral com semelhante peso estratégico. Mais recentemente, a decisão de retirar unilateralmente os EUA do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas deixou o mundo boquiaberto, reação que foi internamente acompanhada por diversos governadores, mayors e CEOs (inclusivamente de empresas não tecnológicas, como a Tesla, a General Electric ou a Walt Disney Company) americanos, que imediatamente se comprometeram a cumprir, nos respetivos estados, cidades, e empresas, as diretrizes ambientais que o líder da nação repudiou.

Tudo isto faz temer que a cooperação em matéria antitrust, uma prioridade da administração Obama (em cujo mandato, por exemplo, foram assinados mais de oitenta Acordos de Assistência Jurídica Mútua em matéria de ação criminal, troca de informações e obtenção de provas), possa conhecer um revés. Pior, que esse revés possa influenciar negativamente outros ordenamentos que se inspiraram no norte-americano; ou pior ainda, que possa inaugurar um período de “corrida às armas”, em que por todo o lado as leis e as práticas de regulação da concorrência sejam costumizadas por forma a apanhar nas suas malhas, sobretudo, empresas estrangeiras.

6. Quanto à dimensão interna, não estão por enquanto anunciadas (nem se preveem) reformas legislativas estruturais, o que significa que as possíveis mudanças de rumo dependerão sobretudo das escolhas pessoais de Donald Trump para os lugares-chave da administração e do poder judicial. Para já, a única nomeação importante é a de Makam Delrahim para o cargo de Procurador-Geral Adjunto para a Divisão Antitrust do Departamento de Justiça dos EUA. Tanto quanto neste momento é possível prever, trata-se de alguém que seguirá a linha republicana tradicional – ou seja, com uma visão moderada do combate aos monopólios, oligopólios e concentração empresarial, e, portanto, bastante business-friendly. Mas para além de muitas dezenas de juízes federais (dos tribunais de distrito, de circuito, de recurso e do Supremo Tribunal), Trump irá nomear pelo menos três (talvez quatro) dos cinco comissários da Federal Trade Comission, para além de designar o seu presidente, cujos mandatos estão a terminar. Será da escolha destas pessoas que poderemos finalmente retirar algumas conclusões sobre se Trump irá seguir a linha republicana tradicional ou se, como por vezes deu a entender durante a campanha, vai adotar uma linha dura no combate às concentrações e aos oligopólios.

E é precisamente nestas sugestões, ou ameaças, que reside o maior dos receios. Trump foi bastante preciso na sua intenção de agir sobre algumas operações e empresas concretas: durante a campanha deu a entender, sem grandes explicações, que se fosse eleito poderia desfazer a fusão NBC/Comcast e se oporia à fusão AT&T/Time Warner, dizendo apenas, no seu estilo mais ou menos enigmático e monossilábico, que “acordos como esses destroem a democracia”; da mesma forma disse várias vezes que a Amazon tinha um “enorme problema em matéria de antitrust”, dando a entender que depois de eleito faria com que esse problema fosse devidamente tratado. 

Tudo isto poderia parecer inócuo, não fosse parecer cirurgicamente dirigido a alguns órgãos de comunicação social de que Trump se queixou repetidamente durante a sua campanha eleitoral – a NBC, a CNN (integrada no grupo Time Warner) e o Washington Post (que pertence a Jeff Bezos, o CEO da Amazon). Trocado em miúdos, muitos comentadores receiam que as regras de concorrência, e a forma como são aplicadas, possam ser utilizadas como instrumento de pressão (ou de repressão) sobre empresas, e sobretudo sobre os media. Não nos podemos esquecer que, não há tantos anos como isso (em 1971), Richard Nixon fez exatamente isso. Numa conversa com um assessor, que só se tornaria pública muitos anos depois, e referindo-se às constantes ameaças da sua administração em instaurar processos por violações de normas de concorrência às três principais cadeias de televisão (ABC, NBC e CBS), o então presidente disse o seguinte: “If the threat of screwing them is going to help us more with their programming than doing it, then keep the threat. Don’t screw them now, otherwise they’ll figure that we’re done”.

7. Se alguma conclusão podemos retirar de tudo isto, é a de que apenas o tempo dirá se os próximos anos irão ou não marcar um retrocesso significativo em mais de dois séculos de avanços lentos, mas geralmente consolidados, no direito da concorrência. Provavelmente a maior parte dos receios será exagerada, e provavelmente teremos, com uma ou outra nuance, apenas mais um capítulo desta “evolução na rotatividade” entre democratas e republicanos. Mas a verdade é que o momento que atravessamos não nos deixa antever com clareza o que pode estar para vir no futuro próximo, e que aqui, como em quase todas as áreas de governação, Donald Trump é uma wild card.

Retomando a frase inicial, vamos esperar que esta continue a ser uma exportação americana de sucesso – desde que o seja, como tem sido, pelas melhores razões. Vivemos tempos de novos e permanentes desafios à regulação da concorrência: o controlo dos grandes conglomerados transnacionais verticais, as novas questões colocadas pela gestão da informação online e do big data, a generalização do private enforcement, o aperfeiçoamento dos mecanismos de clemência como meio de obtenção de prova… Todos eles temas em que a experiência com mais de um século dos EUA é essencial ao resto do mundo, e à Europa em particular, e em que a colaboração internacional não pode de forma nenhuma deixar de continuar a existir para que possa continuar-se no bom caminho: make antitrust great again.

José António Sá Reis é Professor Auxiliar na FDUP, investigador do CIJ e membro do Observatório da Concorrência