YEAR 2015 N.º 1

ISSN 2182-9845

EDITORIAL

Maria Raquel Guimarães

Autonomia e heteronomia na contratação privada, a propósito de jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça

Recentemente, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça sobre o contrato de swap no sentido da sua contrariedade ao princípio da ordem pública e, consequentemente, da sua nulidade [Acórdão do STJ de 29 de Janeiro de 2015 (Bettencourt de Faria) in http://www.dgsi.pt]:

“Confrontando a pura especulação viabilizada pelos contratos [de swap] dos autos com os princípios e valores prevalentes na nossa sociedade (ainda que interpretados actualisticamente), ponderando as desutilidades sociais e económicas que aqueles são aptos a gerar e rememorando o que evola do supra referido comando constitucional [‘alínea c) do artigo 99º da Constituição da República Portuguesa, em que se programaticamente se postula que um dos objectivos da política comercial é o combate às actividades especulativas’], facilmente se alcança a sua desvalia face a esses valores cogentes e ao bem comum, o que autoriza que se conclua pela sua contrariedade à ordem pública”.

O Acórdão contou, porém, com um voto de vencido (Conselheiro João Bernardo), no sentido de que “não pode um tribunal deixar de se apoiar na produção legislativa, quer encarada a nível interno, quer olhando para o nosso país no contexto internacional em que, claramente, se insere, com a praticamente irrelevância das fronteiras acabada de referir”, referindo-se à expressa admissibilidade dos swaps pela Diretiva n.º 2004/39/CE do Parlamento e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro, e pelo Regulamento UE n.º 549/2013 do Parlamento e do Conselho, de 21 de Maio de 2013. Neste voto de vencido contraria-se, ainda, a referência feita no Acórdão ao art. 99.º, alínea c), da CRP, para com esse fundamento se condenar a celebração de negócios especulativos do tipo do swap: “A sua interpretação, assente neste elemento histórico e inserida no contexto resultante também doutros preceitos constitucionais, mormente os relativos à iniciativa privada, levam a que se devam colocar os swaps, mesmo os reportados a capital nocional (também designado por fictício ou hipotético) fora do âmbito do combate que o legislador constitucional determina”.

Nesta última linha, defendendo a validade do contrato de swap, pronunciou-se o mesmo Tribunal há poucos dias atrás, em Acórdão de 11 de Fevereiro de 2015 (Sebastião Póvoas):

“A assim não se entender iria pôr-se de lado um importante instrumento que, como se viu, está previsto e regulado na lei olvidando que a evolução das instituições e da realidade económico-financeira não se compadece com um tratamento jurisprudencial produzido ao abrigo de conceitos manifestamente arredados do quotidiano por, manifestamente, desactualizados” (http://www.dgsi.pt).

Estas tomadas de posição do nosso Supremo Tribunal numa matéria tão (tristemente) actual, debatida de uma forma arrebatada tanto nos meios académicos como nos cafés de bairro, recordaram-me uma reflexão, já antes encetada, sobre o espaço deixado à autonomia privada no domínio da contratação bancária e às intervenções mais ou menos eventuais ou conformadoras do Estado nestas matérias.

É certo que a tensão entre a autonomia e a heteronomia surge no contexto dos contratos bancários e financeiros com bastante intensidade, revelando uma tentativa de equilíbrio nem sempre fácil de alcançar. A composição espontânea ou paritária dos interesses a que se referia Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil, 2012, pp. 16 ss., 90 ss., 227 ss.), privilegiada, como regra, no direito privado, aparece-nos nestes domínios temperada por interferências de natureza heterónoma, no sentido de reequilibrar a autonomia da vontade com princípios de justiça contratual, quer a montante, através dos órgãos legiferantes, estabelecendo regras de natureza imperativa que se impõem aos contraentes, quer a jusante, mediante a intervenção correctora dos tribunais perante textos contratuais iníquos ou excessivamente desequilibrados.

A autonomia da vontade é posta em causa e uma ingerência de tipo hierárquico começa a emergir sempre que é questionada a “eficácia económica da liberdade contratual”, gerando-se “falhas do mercado” (Claus-Wilhelm Canaris, “A liberdade e a justiça contratual na «sociedade de direito privado»”, Contratos: actualidade e evolução, 1997, p. 57). Quando os resultados de uma actividade de natureza privada contendem com os princípios informadores do ordenamento jurídico, contrariando aquelas que são as “traves mestras” do nosso sistema, é desencadeada uma reacção “superior” que trava os efeitos da autonormação.

Mas justificar-se-á, neste caso, essa reacção “superior”? Terão as “traves mestras” do nosso direito privado sido aqui abaladas? A ordem pública foi posta em causa com a celebração, entre uma instituição bancária e uma empresa comercial, de um contrato de swap?

A autocomposição dos interesses que a contratação privada persegue é sempre alcançada através de uma sua hierarquização — neste caso incorporando uma álea, prevendo composições alternativas —, em termos tais que os interesses de uma das partes acabam por ser submetidos ou sacrificados em favor dos interesses da outra. Em regra, o exercício da autonomia da vontade no mundo dos contratos traduz um jogo de forças do qual, com toda a probabilidade, sai vencedor o contraente mais hábil, mais experiente, o mais preparado económica e juridicamente; numa palavra, o mais forte. Mas o prejuízo de um dos contraentes e o avantajamento do outro, em si mesmos, não põem em causa a subsistência do contrato. A essência do contrato comporta ganhos e perdas, e a sua recondução à vontade dos contraentes transforma as vantagens de alguns em vantagens de todos. Ainda assim, cumpre-se, nestas hipóteses, a liberdade contratual. E a liberdade contratual é uma das mais expressivas manifestações da autonomia privada.

É através da liberdade contratual, nas suas vertentes de liberdade de celebração e de liberdade de composição do conteúdo do contrato, que o indivíduo exerce com maior propriedade o seu poder de autodeterminação, compondo livremente os interesses em jogo, conformando-se e conformando as relações com os outros (Orlando de Carvalho, idem, ibidem). A liberdade contratual, enquanto poder abstracto de contratar, corresponde a uma faculdade jurídica secundária que emana de um direito de personalidade: o direito à liberdade.

“Dentro dos limites da lei”, começa por prescrever o art. 405º do Código Civil, têm as partes liberdade contratual. O contrato surge dentro do sistema jurídico (Joaquim de Sousa Ribeiro, O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, 1999, p. 215 ss.) e é por ele tutelado. Configura, porém, uma área de especial liberdade e criatividade dentro do sistema. O legislador demite-se, de forma consciente, da elaboração de uma disciplina dos contratos, optando por intervenções pontuais em matéria de ordem pública ou então de tipo supletivo, propondo modelos de contratação e de contratos. Os contratos são assim moldados de acordo com a vontade e os interesses dos contraentes, cumprindo o seu desígnio de instrumentos privilegiados da autonomia da vontade, ao mesmo tempo que, nas palavras de Sousa Ribeiro (idem, p. 217), “desonera(m) os órgãos legiferantes de uma impraticável regulamentação detalhada de interesses diversificados e particularizados”.

O exercício, pelos particulares, de um poder regulamentar paralelo à normação positiva, circunscrito, ainda assim, neste caso, nomeadamente pelo disposto em matéria de cláusulas contratuais gerais, de negócios usurários, de vícios da vontade e por toda a regulamentação a que estão submetidas as actividades bancárias e financeiras, poderá ser limitado sempre que viole os princípios jurídicos vigentes, aqui e agora, no direito português. A cláusula geral da ordem pública prevista no art. 280.º do Código Civil, é, naturalmente, integrada pelos princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, permitindo, porém, a utilização de um conceito indeterminado, uma grande plasticidade e consequente actualização da norma perante a constante evolução social, económica e tecnológica. E parece não oferecer dúvidas de que o preenchimento da noção de ordem pública tem hoje na sua base uma economia de mercado (Jorge Morais Carvalho, “A ordem pública como limite à autonomia privada”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, III, 2013, p. 369), conformada pelas regras europeias e certamente distinta daquela que existia há uma ou duas décadas atrás,.    

Os dois recentíssimos Acórdãos do Supremo acima referidos podem, pois, constituir (mais) um fundamento para se retomar na doutrina a discussão sobre a liberdade contratual e os seus limites, num domínio tão importante e de tamanha actualidade como o da contratação bancária, e para se revisitar e, porventura, actualizar a leitura e aplicação da cláusula geral da ordem pública nesta sede.

Table of contents

Freedom of contract and its limitations: some reflections based on recent Supreme Court sentences on swaps
Autonomia e heteronomia na contratação privada, a propósito de jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça
 
Recentemente, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça sobre o contrato de swap no sentido da sua contrariedade ao princípio da ordem pública e, consequentemente, da sua nulidade [Acórdão do STJ de 29 de Janeiro de 2015 (Bettencourt de Faria), in ]:
“Confrontando a pura especulação viabilizada pelos contratos [de swap] dos autos com os princípios e valores prevalentes na nossa sociedade (ainda que interpretados actualisticamente), ponderando as desutilidades sociais e económicas que aqueles são aptos a gerar e rememorando o que evola do supra referido comando constitucional [‘alínea c) do artigo 99º da Constituição da República Portuguesa, em que se programaticamente se postula que um dos objectivos da política comercial é o combate às actividades especulativas’], facilmente se alcança a sua desvalia face a esses valores cogentes e ao bem comum, o que autoriza que se conclua pela sua contrariedade à ordem pública”.
O Acórdão contou, porém, com um voto de vencido (Conselheiro João Bernardo), no sentido de que “não pode um tribunal deixar de se apoiar na produção legislativa, quer encarada a nível interno, quer olhando para o nosso país no contexto internacional em que, claramente, se insere, com a praticamente irrelevância das fronteiras acabada de referir”, referindo-se à expressa admissibilidade dos swaps pela Diretiva n.º 2004/39/CE do Parlamento e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro, e pelo Regulamento UE n.º 549/2013 do Parlamento e do Conselho, de 21 de Maio de 2013. Neste voto de vencido contraria-se, ainda, a referência feita no Acórdão ao art. 99.º, alínea c), da CRP, para com esse fundamento se condenar a celebração de negócios especulativos do tipo do swap: “A sua interpretação, assente neste elemento histórico e inserida no contexto resultante também doutros preceitos constitucionais, mormente os relativos à iniciativa privada, levam a que se devam colocar os swaps, mesmo os reportados a capital nocional (também designado por fictício ou hipotético) fora do âmbito do combate que o legislador constitucional determina”.
Nesta última linha, defendendo a validade do contrato de swap, pronunciou-se o mesmo Tribunal há poucos dias atrás, em Acórdão de 11 de Fevereiro de 2015 (Sebastião Póvoas):
“A assim não se entender iria pôr-se de lado um importante instrumento que, como se viu, está previsto e regulado na lei olvidando que a evolução das instituições e da realidade económico-financeira não se compadece com um tratamento jurisprudencial produzido ao abrigo de conceitos manifestamente arredados do quotidiano por, manifestamente, desactualizados” ().
Estas tomadas de posição do nosso Supremo Tribunal numa matéria tão (tristemente) actual, debatida de uma forma arrebatada tanto nos meios académicos como nos cafés de bairro, recordaram-me uma reflexão, já antes encetada, sobre o espaço deixado à autonomia privada no domínio da contratação bancária e às intervenções mais ou menos eventuais ou conformadoras do Estado nestas matérias.
É certo que a tensão entre a autonomia e a heteronomia surge no contexto dos contratos bancários e financeiros com bastante intensidade, revelando uma tentativa de equilíbrio nem sempre fácil de alcançar. A composição espontânea ou paritária dos interesses a que se referia Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil, 2012, pp. 16 ss., 90 ss., 227 ss.), privilegiada, como regra, no direito privado, aparece-nos nestes domínios temperada por interferências de natureza heterónoma, no sentido de reequilibrar a autonomia da vontade com princípios de justiça contratual, quer a montante, através dos órgãos legiferantes, estabelecendo regras de natureza imperativa que se impõem aos contraentes, quer a jusante, mediante a intervenção correctora dos tribunais perante textos contratuais iníquos ou excessivamente desequilibrados.
A autonomia da vontade é posta em causa e uma ingerência de tipo hierárquico começa a emergir sempre que é questionada a “eficácia económica da liberdade contratual”, gerando-se “falhas do mercado” (Claus-Wilhelm Canaris, “A liberdade e a justiça contratual na «sociedade de direito privado»”, Contratos: actualidade e evolução, 1997, p. 57). Quando os resultados de uma actividade de natureza privada contendem com os princípios informadores do ordenamento jurídico, contrariando aquelas que são as “traves mestras” do nosso sistema, é desencadeada uma reacção “superior” que trava os efeitos da autonormação.
Mas justificar-se-á, neste caso, essa reacção “superior”? Terão as “traves mestras” do nosso direito privado sido aqui abaladas? A ordem pública foi posta em causa com a celebração, entre uma instituição bancária e uma empresa comercial, de um contrato de swap?
A autocomposição dos interesses que a contratação privada persegue é sempre alcançada através de uma sua hierarquização — neste caso incorporando uma álea, prevendo composições alternativas —, em termos tais que os interesses de uma das partes acabam por ser submetidos ou sacrificados em favor dos interesses da outra. Em regra, o exercício da autonomia da vontade no mundo dos contratos traduz um jogo de forças do qual, com toda a probabilidade, sai vencedor o contraente mais hábil, mais experiente, o mais preparado económica e juridicamente; numa palavra, o mais forte. Mas o prejuízo de um dos contraentes e o avantajamento do outro, em si mesmos, não põem em causa a subsistência do contrato. A essência do contrato comporta ganhos e perdas, e a sua recondução à vontade dos contraentes transforma as vantagens de alguns em vantagens de todos. Ainda assim, cumpre-se, nestas hipóteses, a liberdade contratual. E a liberdade contratual é uma das mais expressivas manifestações da autonomia privada.
É através da liberdade contratual, nas suas vertentes de liberdade de celebração e de liberdade de composição do conteúdo do contrato, que o indivíduo exerce com maior propriedade o seu poder de autodeterminação, compondo livremente os interesses em jogo, conformando-se e conformando as relações com os outros (Orlando de Carvalho, idem, ibidem). A liberdade contratual, enquanto poder abstracto de contratar, corresponde a uma faculdade jurídica secundária que emana de um direito de personalidade: o direito à liberdade.
“Dentro dos limites da lei”, começa por prescrever o art. 405º do Código Civil, têm as partes liberdade contratual. O contrato surge dentro do sistema jurídico (Joaquim de Sousa Ribeiro, O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, 1999, p. 215 ss.) e é por ele tutelado. Configura, porém, uma área de especial liberdade e criatividade dentro do sistema. O legislador demite-se, de forma consciente, da elaboração de uma disciplina dos contratos, optando por intervenções pontuais em matéria de ordem pública ou então de tipo supletivo, propondo modelos de contratação e de contratos. Os contratos são assim moldados de acordo com a vontade e os interesses dos contraentes, cumprindo o seu desígnio de instrumentos privilegiados da autonomia da vontade, ao mesmo tempo que, nas palavras de Sousa Ribeiro (idem, p. 217), “desonera(m) os órgãos legiferantes de uma impraticável regulamentação detalhada de interesses diversificados e particularizados”.
O exercício, pelos particulares, de um poder regulamentar paralelo à normação positiva, circunscrito, ainda assim, neste caso, nomeadamente pelo disposto em matéria de cláusulas contratuais gerais, de negócios usurários, de vícios da vontade e por toda a regulamentação a que estão submetidas as actividades bancárias e financeiras, poderá ser limitado sempre que viole os princípios jurídicos vigentes, aqui e agora, no direito português. A cláusula geral da ordem pública prevista no art. 280.º do Código Civil, é, naturalmente, integrada pelos princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, permitindo, porém, a utilização de um conceito indeterminado, uma grande plasticidade e consequente actualização da norma perante a constante evolução social, económica e tecnológica. E parece não oferecer dúvidas de que o preenchimento da noção de ordem pública tem hoje na sua base uma economia de mercado (Jorge Morais Carvalho, “A ordem pública como limite à autonomia privada”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, III, 2013, p. 369), conformada pelas regras europeias e certamente distinta daquela que existia há uma ou duas décadas atrás,.    
Os dois recentíssimos Acórdãos do Supremo acima referidos podem, pois, constituir (mais) um fundamento para se retomar na doutrina a discussão sobre a liberdade contratual e os seus limites, num domínio tão importante e de tamanha actualidade como o da contratação bancária, e para se revisitar e, porventura, actualizar a leitura e aplicação da cláusula geral da ordem pública nesta sede.